Por que razão existe um tritão assustador no Palácio da Pena?
20 abr. 2023
Quem visita o Palácio da Pena não fica indiferente à figura grotesca que ali se encontra. Um monstro, meio homem meio peixe. Por que razão D. Fernando II quis pôr este Tritão na entrada do seu palácio?
Esta figura eleva-se sobre a ‘Porta dos Corais’, ou árvore das águas. A ideia seria jogar com o duplo sentido da árvore, símbolo da vida, e das águas profundas, que evocam a morte, mas também a origem do mundo. Existe uma ambivalência no que toca à presença das raízes da videira nascidas nos cabelos do Tritão – “são um sinal de morte, mas, estando reapresentadas à vista, simbolizam, por antinomia, a vida que irá crescer e se afirmar”, explica Mariana Schedel, conservadora do Palácio da Pena.
Segundo a investigadora Regina Anacleto, o Tritão “evoca o período anterior à formação do mundo (…) está na base de um novo nascimento que acaba por ser ressurreição. “Morra o homem velho, viva o homem novo”, eis a fórmula capaz de resumir a simbologia do monstro.”
Na sua obra, a historiadora acrescenta que esta figura acaba por funcionar como “guardião dos palácios e dos tesouros, não dos fabulosos, pertencentes ao mundo exterior, mas dos relacionados com o mundo interior (…) ao qual apenas se chega através da transformação subjetiva e íntima (…)”. A sua localização específica à entrada do Palácio da Pena permite-lhe, assim, ‘confrontar com o olhar’ quem ali passa. “Lembra, talvez, o estatuto das gárgulas medievais, que contemplam os que ainda estão ‘no lado de fora’ e que ainda não se atreveram a passar o portal para tocar o solo sagrado”, sugere Mariana Schedel.
A origem (lendária) do Tritão em Sintra
Crê-se que tenha sido D. Fernando II o autor do desenho para este monstro, executado em calcário. Mas onde foi o rei buscar inspiração para criar tal figura? Qual a sua ligação ao Palácio e a Sintra?
Um dos aspetos está relacionado com as influências arquitetónicas do monumento: a ligação ao mundo marinho, remetendo para o “revivalismo Manuelino que perpassa todo o Palácio da Pena”, refere a conservadora. “A sua posição de sustentáculo é inspirada na Janela Manuelina do Convento de Tomar”, acrescenta.
Mas a verdade é que poderá existir uma influência ainda mais antiga que esta, baseada nas lendas de Sintra. Ao longo de milhares de anos, foram muitas as histórias que surgiram sobre a presença de personagens mitológicas nas praias da região, onde a terra acaba e o mar começa.
A mais conhecida é precisamente a do Tritão que vivia no ‘Buraco do Fojo’, perto da Praia da Adraga. Segundo Plínio, o Velho (27-79 d.C.), nesta zona foi avistado “(…) numa certa gruta, tocando búzio, um Tritão sob a forma que é conhecida.” “Tenho testemunhos de distinguidos membros da ordem equestre atestando que eles próprios viram no oceano de Gades um homem marinho, em todas as partes do seu corpo parecido com um homem”, acrescenta o autor clássico, na sua ‘Historiae Naturalis Libri XXXVII’.
Séculos depois, mais precisamente em 1554, ao descrever Colares na obra ‘Urbis Olisiponi Descriptio’, Damião de Góis refere que “(…) não muito longe da aldeia, debaixo dum rochedo sobranceiro ao mar, há uma gruta batida pelo oceano. A gruta engole as ondas que penetram lá dentro e se entrechocam numa confusão de água e de espuma, e de novo as vomita com o enorme ruído das vagas. Daí que o nosso povo julgue que ali foi visto outrora um tritão a cantar com a sua concha.". O cronista não refuta esta ideia, uma vez que, “nos Antigos Arquivos do Reino, de cuja chefia eu próprio estou (…) encarregado, existe ainda um antiquíssimo manuscrito dum contrato (…) nesse documento se determina o imposto das sereias e outras espécies de animais pescadas nas praias (…). Donde se deduz obviamente que as sereias eram então frequentes nas nossas águas, visto que sobre elas se promulgou uma lei.” A lei seria aplicada não só às sereias, mas também a “tritões e nereides”.
Damião de Góis escreveu ainda que, mesmo naquele tempo, no litoral, era possível encontrar “uma espécie de homens a que os habitantes da área começaram a dar o nome de homens-marinhos, devido à sua natureza e origem, sobretudo pelo facto de apresentarem e conservarem na superfície da pele umas rugosidades ou escamas (…) como se fossem vestígios da sua antiga raça. Sempre se teve como certo que tais seres devem a sua origem e ascendência aos homens-marinhos ou tritões. Tudo isto provém, conforme as tradições dos antepassados de que os tritões por vezes saltavam para terra, e pouco a pouco se habituavam a brincar na praia; atraídos pela doçura da fruta, que naquela região é muito abundante, ali voltavam muitas vezes; por inefável astúcia dos habitantes, alguns deles foram apanhados e depois iniciados com carinho num género de vida mais civilizado e menos selvagem.”
Assim, a presença do Tritão no Palácio da Pena pode também ser encarada como uma ode às lendas de Sintra, os seres fantásticos que, à semelhança de D. Fernando, tanto gostaram desta terra, que por aqui decidiram ficar.