Facto ou Mito. Um dos frades do Convento dos Capuchos viveu muitos anos numa gruta?
25 nov. 2024
O Convento dos Capuchos é dos locais mais simples, mais místicos e mais belos da Serra de Sintra. Não há zona deste monumento que não esteja carregada de simbolismo religioso, mostrando como é possível viver em simbiose com a natureza, contrastando com o luxo e a opulência de muitos outros locais espalhados pelo concelho. A construção do edifício funde-se, de facto, com a natureza – é até conhecido como o Convento da Cortiça –, mas, por muito simples que fosse, não deixava de ser uma obra do Homem, pensada para, da forma mais simples possível, abrigá-lo. Então, será que houve mesmo algum frade que dispensou as quatro paredes e preferiu viver numa gruta junto ao convento?
A resposta é simples: sim. E a sua história está documentada. Frei Honório de Santa Maria é, provavelmente, o mais famoso dos frades franciscanos que viveram no Convento dos Capuchos – a ‘Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida’, do frade cronista António da Piedade (1728), tem um capítulo intitulado ‘Vida do Venerável Frei Honório de Santa Maria’. Nasceu no início do século XVI, em Arcos de Valdevez, e, segundo, o memorial dos frades e benfeitores da província franciscana da Arrábida (o convento de Santa Maria da Arrábida era a ‘casa-mãe’ desta comunidade), Honório era “muito diligente em ensinar, aos que achava capazes, os exercícios espirituais e a oração mental”.
Segundo o mesmo documento, Frei Honório chegou a Santa Maria da Arrábida em 1561, já com alguma idade, depois de ter andando por Lisboa, “por Itália e outras partes da Ordem, fazendo inquirição das coisas notáveis, acontecidas na nossa religião”. Era descrito como um homem de uma humildade e caridade extremas.
Depois da passagem pela Arrábida, Frei Honório instalou-se no Convento dos Capuchos, em Sintra. Em alternativa à sua cela, o frade franciscano decidiu viver numa cova escondida na mata da cerca do Convento, que pode hoje ser visitada. “Com licença dos prelados, elegeu por cela uma cova, que está na cerca, (…) sombria, triste e medonha, cuja horrorosa vista intimida aos humanos para a verem, quanto mais para a habitarem”, refere a crónica. “A sua cama era uma cortiça e uma pedra ou pão lhe servia de cabeceira, sem outra alguma cobertura com que pudesse reparar dos frios”, descreve o cronista. Este local tornou-se muito conhecido e constava de toda a literatura de viagens dos séculos XVIII e XIX.
CONCLUSÃO: FACTO
O ‘problema’ dos números
E quantos anos viveu Frei Honório nesta gruta? Ponto prévio: a ‘Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida’, o documento em que se baseia este artigo e muitos dos textos escritos sobre esta figura, foi publicado em 1728, mais de 130 anos depois da morte de Honório. Por isso, é possível que haja alguma imprecisão nas datas ou em algumas passagens. Em relação a este tema, o texto de frei António da Piedade não nos dá uma data concreta para a chegada do frade franciscano a Sintra. Sabemos, sim, que viveu na sua cova pelo menos “dezasseis anos contínuos”: “Ninguém a vê [a cova], sem que lhe sirva de despertador da morte; e todos ouvem assombrados que nela pudesse viver dezasseis anos contínuos Frei Honório, contando já com oitenta de idade”.
Esta última parte da idade pode ser interpretada de duas formas: Frei Honório isolou-se na gruta com cerca de 80 anos, vivendo lá outros 16, ou completara 80 anos de idade, dos quais 16 já tinham sido passados naquele local (e estendendo a sua estadia por mais tempo)? Confuso? Um pouco… O que é dado como certo nesta crónica é que o frade franciscano morreu com 95 anos de idade, em 1596, na sua cova: “No dia 16 de outubro de 1596, tendo acabado de dizer a missa, como costumava todos os dias, se recolheu à sua cova, a dar a Deus as devidas graças pelo soberano manjar, com que o tinha recreado, aceitando-o já como viático para a jornada, que seu espírito havia de fazer naquele dia para o céu”. Ora, se com 80 anos já vivia naquela cova há 16, e acabou por morrer com 95, isto dá um total de pelo menos 31 anos a viver na sua gruta. Continua confuso? Um pouco… A verdade é que a frase inicial pode ser interpretada de duas maneiras e, por isso, é impossível ter a certeza de quantos anos Frei Honório viveu a sua cova. Tenham sido 16 ou 30, é inacreditável que um homem com uma idade tão avançada conseguisse sobreviver tanto tempo numa gruta, com o frio e a chuva tão característicos da Serra de Sintra.
Segundo o Memorial, Frei Honório de Santa Maria morreu, então, com 95 anos “consumidos por rigorosas penitências e consumados com portentosos finais de grande aceitação”. Foi sepultado na igreja do convento.
A lenda de Frei Honório
E por que razão Frei Honório de Santa Maria escolheu viver numa cova e não numa cela do Convento dos Capuchos? Aqui, sim, começam a surgir os mitos.
De acordo com as histórias relatadas na ‘Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida’, Frei Honório cruzou-se várias vezes com o diabo. Este assumia a figura de homem e tentava-o das mais diferentes maneiras – ocupava-o com confissões que duravam dias, desviava-lhe a atenção para que não pudesse ouvir os restantes pecadores, assustava-o deixando “sapos espetados em paus e outros bichos mortos no seu caminho” e muitas outras provações.
Mas a história mais conhecida envolve uma mulher. “Para satisfazer à obediência do prelado, que o mandava pedir a esmola de alforge ao Lugar do Penedo, partiu do Convento e, havendo passado o muro da Cerca, antes de entrar numa espessa e sombria mata, a que chamam de Avelãs, lhe foi ao encontro uma moça bem composta, em cujo aspeto se podiam ler sem embaraços em rubicundos caracteres os realces da modéstia”, lê-se. Face a todas as peripécias por que passou anteriormente, o frade franciscano não teve dúvidas: estava perante o diabo disfarçado de mulher. E, sem hesitar, “virando-se para a parte esquerda, onde junto à estrada está um grande e levantado penedo, fez nele uma formosa cruz com o dedo. E como se este fosse o cinzel ou a pedra perdesse a natureza, ficou a cruz nela impressa e se desfez a aparente figura”.
Quando se conta esta história, muita gente acrescenta que, como castigo por quase ter cedido à tentação, Frei Honório isolou-se numa cova, alimentando-se apenas a pão e água. Mas a verdade é que não há nada que indique que este episódio tivesse estado na origem da sua decisão de viver na cerca do Convento dos Capuchos. Aliás, o mais provável é que, na altura em que este encontro ocorreu (se é que ocorreu algo semelhante sequer…), já Frei Honório vivesse na sua cova há muito tempo.