Camões leu 'Os Lusíadas' a D. Sebastião no Paço de Sintra?
07 jun. 2024
No 500º aniversário de Luís Vaz de Camões – que se assinala em 2024 – vamos tentar resolver um dos mistérios da história da literatura portuguesa, que envolve o grande poeta e Sintra: é verdade que Camões leu 'Os Lusíadas' a D. Sebastião no Pátio da Audiência do Palácio Nacional de Sintra? Alguns sintrenses respondem sem hesitar que sim, vários guias turísticos não se coíbem de passar esta informação aos visitantes como sendo um dado adquirido, mas muitos se questionam sobre a veracidade desta história. Será facto ou mito?
Muitos ficarão desiludidos com a resposta: a verdade é que, com base nas investigações que têm sido levadas a cabo ao longo dos anos pela equipa de conservadores do Palácio Nacional de Sintra, não existem fontes para comprovar a história deste encontro. Trata-se, essencialmente, de uma construção efabulada em épocas posteriores.
Mas, então, como é que uma história como estas ganhou tanto peso? Primeiro ponto: tudo o que envolve a figura de D. Sebastião ganha, de alguma forma, uma aura mística. Sendo um dos monarcas mais conhecidos do grande público – a lenda em torno da sua morte tornou-o um dos mais populares –, é normal que muitas das histórias que o envolvam ganhem alguma dimensão no que diz respeito à tradição oral. Segundo ponto: um dos principais autores desta história era (e é) alguém com uma grande influência em Portugal, considerada uma das principais figuras do Romantismo português: Almeida Garrett.
No conhecido poema Camões (1825), mais precisamente nos cantos VII e VIII, o escritor conta como o próprio poeta narrou 'Os Lusíadas' a D. Sebastião. Aqui ficam alguns versos:
“E el‑rei, como inquieto, ao aio antigo:
— «Dom Aleixo, entre tantos pretendentes
O vosso protegido não no vejo.»
— «Ei‑lo, senhor, o nobre cavaleiro
Que desejais ouvir.»
— «Sim, quero ouvi‑lo,
Quero e desejo: não ignoro o preço
Das boas letras, nem dum raro engenho
A estima desvalio: em prol da pátria
Uns obramos coa espada; cumpre a outros
Coa pena honrá‑la.»”
Na altura, Almeida Garrett situou o momento da leitura na Penha Verde (que é hoje uma propriedade privada) e não no Paço de Sintra:
— «Iremos, para ouvir‑vos,
Da Penha‑verde à fresquidão sentar‑nos.
Calmoso vai o tempo; e ademais, prazem
Dobrado entre a verdura os dons das musas.»
Esta obra de Garrett tornou-se muito popular e o momento em que Camões leu a primeira epopeia portuguesa ao monarca rapidamente se impregnou no imaginário coletivo. Algumas décadas depois, o Conde de Sabugosa tentou, na sua obra 'O Paço de Cintra', desmistificar este assunto:
“Poderia ser também por este tempo [por volta de 1577] que tivesse lugar a permanência de Camões em Cintra, se a fantasia ideada por Garrett no seu poema tivesse fundamento. É de tentar a imaginação. Em frente ao moço Rei sonhador, místico e guerreiro, o capitão de Diu, rodeado dos estouvados e temerários cortesãos; Camões, o poeta e cavaleiro, recitando os Lusíadas naquele cenário que D. João de Castro compusera! Que quadro! Infelizmente nada nos indica que a cena ideada por Garrett e outros escritores, seduzidos pela possibilidade de tão sugestivo lance, tenha realidade”.
O poeta alemão Wilhelm Storck mostra no seu livro 'Vida e Obras de Luís de Camões' (1897), traduzido por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, que existem até imprecisões temporais que acabam por deitar por terra esta história:
“O romântico Almeida Garrett foi, que eu saiba, o primeiro a falar de uma entrevista do Camões com D. Sebastião, apresentando no seu drama épico lírico o nosso poeta no acto de depor entre as mãos do monarca o seu poema. É em Cintra. O Soberano adolescente, sentado à fresca sombra da Penha Verde, ouve, cheio de entusiasmo o canto dos feitos heróicos dos seus ascendentes e do seu povo, aurindo absorto as palavras dos lábios trementes do Poeta, que recita. Servira de intermediário o ínclito aio de El-Rei, o estadista experimentado e fidalgo patriota, Aleixo de Menezes. Pena é que a poética ficção se desfaça em fumo logo que a fitemos mais de perto, lembrando-nos de que D. Aleixo já falecera em 1569, antes do regresso de Camões da índia, ferido no âmago do coração amargurado, ao ver como todos os seus conselhos eram menosprezados, e o jovem monarca ia levado por influências perniciosas que o descaminhavam sistematicamente”.
Existe ainda outro aspeto a ter em conta: a forma como a corte funcionava na altura. “Já em tempo de D. João III a vida da Corte se modificará, e o neto era quase inacessível, propenso apenas a caçadas e exercícios corporais, como escola preparatória para pelejas e guerras. Dos numerosos cronistas que D. Sebastião teve, nem um só menciona semelhante facto. Igual silêncio guarda a ode a D. Manuel de Portugal e outra poesia, dirigida pelo próprio Camões directamente a seu Rei e Senhor”, escreveu o Conde de Sabugosa em ‘O Paço de Sintra’. “Vê-se, portanto, que a estada de Camões em Cintra, e a sua frequência no Paço, nesta época, se não é impossível, pois que alguns dos personagens coexistiram, é contudo indocumentada”, acrescenta.
E por que razão o Palácio Nacional de Sintra começou a ser associado a este momento, se o poema de Almeida Garrett – que, ao que tudo indica, é o ‘criador’ desta história – situa a ação na Penha Verde?
A resposta reside, na verdade, em construções artísticas posteriores. Apesar de existirem gravuras que ilustram o momento no meio da Serra de Sintra (como esta), a maioria das representações artísticas retrata esta leitura de 'Os Lusíadas' no Pátio da Audiência do Palácio Nacional de Sintra (um espaço que é acessível ao público quando as condições climatéricas o permitem). Um desses exemplos é um estudo de Enrique Casanova, que representa o Concelho de D. Sebastião no Paço de Sintra e, segundo algumas interpretações, uma das figuras representadas é Camões (imagem acima). Pertenceu à rainha D. Amélia e esteve exposto no seu Gabinete no Palácio Nacional da Pena. Outro exemplo, mais recente, é o filme 'Camões' (1946). A cena não foi filmada no Pátio da Audiência, mas esta divisão serviu de modelo para a cenografia.
Juntando toda esta informação, “percebe-se que, lançado o mito por Almeida Garrett, foram criados discursos e outras imagens que fazem com que hoje seja difícil desvanecer esses contornos da imaginação da memória coletiva”, explica o conservador do Palácio Nacional de Sintra, Cláudio Marques. “É um episódio que carece de documentação histórica que o comprove”, acrescenta.
CONCLUSÃO: Mito