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AVENTURAS DO QUIXOTE EM HAMBURGO

 

A recepção do romance picaresco de Cervantes (1) nos países alemães dá-se, primeiro, por via das traduções para francês e para inglês (2). Uma tradução parcial (3) para alemão estava pronta em 1621, mas os eventos e a ulterior devastação causada na Europa central pela Guerra dos Trinta Anos (1618-48) fez que a publicação tardasse até 1648. Essa versão seria reeditada em 1669, antes de aparecer outra, em 1683, baseada numa nova tradução francesa de 1677-78.

 

Mas, na verdade, as elites alemãs dos séculos XVII e XVIII conheciam bem a história, antes de mais, pelas várias traduções francesas, língua que dominavam bem.

 

O potencial do romance (e dos episódios nela contidos/contados) para o teatro musical cedo foi adivinhado. No caso dos palcos líricos alemães, a “chegada” do Quixote dá-se em 1690, data da estreia, em Hamburgo, da comédia musical Der irrende Ritter Don Quixote de la Mancia, de Johann Philipp Förtsch. Depois disso, foram-se sucedendo versões de temática quixotesca nos teatros do espaço germanófono, contando-se pelo menos mais seis até chegarmos à obra hoje em programa, que estreou em Hamburgo, a 5 de Novembro de 1761.

 

Quando, portanto, Telemann toma contacto com o libreto preparado pelo jovem universitário Schiebeler, também estudante da língua e literatura castelhanas, ele tem já atrás de si uma rica tradição de versões da história para o teatro musical. Tem até mesmo a sua própria tradição: algures entre 1726 e 1730 (quiçá mais cedo, segundo outros), Telemann compusera a ‘Ouverture-Suite Burlesque de Quichotte’, para cordas e contínuo, que faz suceder a uma Abertura sete andamentos relatando outros tantos episódios do Quixote; e, em 1727, estreara em Hamburgo o seu ‘Singspiel‘ de título ‘Sancio, oder Die Siegende Grossmuth‘ (4), cuja música se perdeu, excepto a de 3 árias, que aparecem no seu magazine didáctico ‘Der getreue Music-Meister‘ (ed. 1728-29). Mas que Telemann, aos 80 anos, se tenha sentido motivado para nova ópera (seria a sua última) e – mais – que tenha conseguido inscrever na música uma verve e um humor que ‘pedem meças’ ao texto de Schiebeler, isso sim é absolutamente notável!

 

O episódio retratado nesta serenata provém da parte II da obra de Cervantes, concretamente dos capítulos 20 e 21. Em termos de estrutura, Telemann organizou a obra num acto único, com um total de 26 números distribuídos por 5 cenas.

 

Em termos de forma, predomina a ária e o recitativo, apenas com um dueto (final da cena 2) e dois números de conjunto (início da cena 2 e final da serenata).

 

Em termos textuais, Telemann modificou com grande minúcia o libreto (estrutura e métrica) que recebeu de Schiebeler, de modo a que se adequasse à progressão narrativa e à música que tinha em mente para a obra. Musicalmente, Telemann estabelece um contraste entre a música para Quixote e Sancho, por um lado, e para os restantes personagens (estes, pertencentes ao universo aldeão ou pastoril), por outro. Quixote e Sancho assumem ar algo emproado, mas com propósito paródico. As suas árias lembram as ‘da capo’ da ‘opera seria’ italiana e os seus diálogos são em ‘stile recitativo’. Já as pessoas simples são representadas por melodias simples de recorte popular-tradicional. Essa representação inclui até, por exemplo nas canções pastoris, o uso de ritmos e técnicas instrumentais sinalizadoras da música espanhola (chacona, jota aragonesa), a partir das descrições fornecidas pelo próprio Cervantes na obra original, mas sempre dentro do reconhecível estilo telemanniano.

 

Após as récitas de estreia, a serenata terá ficado esquecida até 17/8/2001, data em que se deu a estreia moderna, em Basileia, numa produção do ensemble Il Teatro Amoroso (desde 2003, Teatro Arcimboldo), sob a direção de Thilo Hirsch. Ela seria levada ao Festival Telemann de Magdeburgo (cidade natal do compositor) sete meses depois.

 

Bernardo Mariano (musicólogo)

Notas

  • (1) ‘Dom Quixote’ foi editado em 1605 (Parte I) e 1615 (Parte II).
  • (2) A tradução integral do ‘Quixote’ para inglês e francês aparece entre 1612 e 1620, seguindo-se a italiana, em 1622.
  • (3) Essa tradução, da autoria de Joachim Caesar (cujo nome surge sob o pseudónimo de Bastel von der Sohle) abrange apenas até ao início do capítulo XXIII da parte I do texto original. Considerando que essa parte tem 52 capítulos e a 2.ª parte 74, estamos a falar de cerca de 1/6, apenas, do texto integral.
  • (4) Em português: ‘Sancho, ou a magnanimidade triunfante’.

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