Época festiva: encerramento no Natal e na Passagem de Ano. Saiba mais 

Miei Sospiri - Notas ao Programa

O programa desta noite tem como chamariz principal a inclusão de obras de duas compositoras do Barroco italiano: Barbara Strozzi, de Veneza e Isabella Leonarda, de Novara. Barbara Strozzi é um ’fruto’ do meio artístico-musical veneziano, beneficiando de um pai (Giulio Strozzi) muito liberal e de uma cidade tolerante q.b. para que ela se pudesse afirmar enquanto cantora e compositora respeitada com música editada. Já Isabella Leonarda beneficiou de um paradoxo: a liberdade que a clausura conventual lhe proporcionou para criar música. Freira ursulina (regra de Sto. Agostinho) desde os 16 anos, a sua vida criativa estende-se por seis décadas, aí se destacando Motetes para voz solo (o equivalente sacro das Cantatas profanas da época) e Sonatas para um ou dois violinos e contínuo – aqui, as ‘12 Sonatas, op. 16’, publicadas em 1693, em Bolonha, sendo as primeiras sonatas publicadas compostas por uma mulher.  

 

Mas, pioneiras – e corajosas – que certamente foram, Strozzi e Leonarda são apenas duas das 23 mulheres que viram música sua editada na Península Itálica, entre 1566 e 1700, mais que em qualquer outro país europeu!

 

‘Lagrime mie’, de Strozzi, é uma Cantata para soprano e contínuo designada de ‘Lamento’ e incluída na colecção de 15 cantatas intitulada ‘Diporti di Euterpe, op. VII’, editada em Veneza, em 1659. O texto é de Pietro Dolfino. Ilustra a prática do ‘recitar cantando’ dentro do novo ‘stile rappresentativo’ (de que Monteverdi foi o mais famoso expoente), visando a expressão pela voz das emoções que vive a personagem.

 

De Leonarda, escutamos a Sonata XII, em ré menor, do citado op. 16, obra que faz sucederem-se sete diferentes ‘tempi’/secções. Abre com um ‘Adagio’, que é como que um ‘ricercare’ tacteante, seguindo-se um ‘Allegro e Presto’, em que o material temático depressa é levado para a elaboração fantasiosa tonalmente vagueante. Vem depois um ‘Vivace e Largo’, o primeiro com algo de dança ibérica, e o ‘Largo’ meditativo e recolhido, mas que se metamorfoseia, ligando com fluidez ao ‘Allegro’ seguinte (Aria) e constituindo com este um díptico que nos remete para a vocalidade operática. A obra termina em espírito dançante e rústico (‘Veloce’), explorando efeitos de eco e terminando sóbria.

 

Passamos agora à canção monódica de forma estrófica: as duas composições de Frescobaldi têm os números 15 e 16 na sua colecção de ‘Arie musicali’, editada em dois volumes em Florença, em 1630. Ambas têm por base esquemas harmónicos fixos que se repetem, mais desenvolvido em ‘Così mi disprezzate’, que também é vocalmente mais variado. ‘Sì dolce è’l tormento’ é uma das três contribuições de Monteverdi para a recolha de 29 canções de vários autores intitulada ‘Quarto scherzo della ariose vaghezze’, editada em Veneza, em 1624. Articula-se em quatro estrofes (sextilhas) sobre balanço ternário. Estas canções eram normalmente acompanhadas ao cravo, à tiorba ou chitarrone, à harpa dupla ou então à dita ‘chitarra spagnola’, então em rápida expansão e crescente popularidade por toda a Itália. Outro sinal da influência cultural espanhola era a adopção das progressões harmónicas típicas de danças da Península Ibérica, como a ‘chacona’, a ‘passagaglia’ ou a ‘folia’, como suporte ou ‘basso ostinato’ das canções (designadas indistintamente ‘canzonette’, ‘ariette’, ‘arie’, mas sem codificação formal).

 

De Benedetto Ferrari, virtuose da tiorba, compositor e libretista, ouvimos uma canção sobre baixo de ‘chacona’ incluída no Livro III das suas ‘Musiche e poesie varie a voce sola’, editadas em Veneza, em 1641.  Tem seis estrofes, das quais a 5.ª é feita em ‘recitativo secco’, e mistura ornamentação, ‘recitar cantando’ e madrigalismos.

 

Por fim, a Sonata ‘La Biancuccia’ assim chamada por ter sido pelo seu autor dedicada a Giovanni Giacomo Biancucci, seu colega músico na Capela da corte arquiducal de Innsbruck. Ela é a 4.ª das 6 Sonatas, op. 4, editadas em conjunto com as também 6 Sonatas, op. 3, em 1660, na capital do Tirol. É ilustrativa do chamado ‘stylus phantasticus’ do Barroco inicial, caracterizado pelo espaço deixado à improvisação e adição de ornamentação variegada, pelos contrastes de ‘tempi’ sucedendo-se sem interrupção, contrastes de escrita e de carácter, efeitos surpreendentes e culto do imprevisível, do imprevisto, do anti-convencional. Configurava-se assim um primeiro apogeu da escrita instrumental (neste caso, para o violino) como sujeito de pleno direito e detentor de eloquentes faculdades retóricas.

 

Bernardo Mariano (musicólogo)